Catarina: Foi há 60 anos
Estive ontem em Baleizão. Pela segunda vez. Uma outra visita anterior a Catarina, em 1971, foi não a Baleizão mas ao cemitério de Quintos onde permaneceu em "exílio forçado" decidido pela PIDE e a GNR. Nesse dia, recordo, deixei papoilas na sua campa. Ontem fomos muitos os camaradas seus presentes, primeiro no cemitério da sua aldeia de Baleizão, para onde foi trasladada após o 25 de Abril, e depois no largo em cujocentro está um elemento escultórico em sua homenagem. E foi afirmado que pelas mesmas razões que ela deu a vida, lutamos nós hoje.
pedem-me hoje, catarina, que (te) escreva
quando o ilêncio afinal é que apetece,
mas aceitei porque sou um inveterado jogador de berlinde.
em cinquenta e quatro lia eu as aventuras do capitão marvel
enquanto ouvia lucílle e she´s so fine
que, suponho, não devias conhecer.
tinha perdido, por essa altura, a oportunidade
de ter o primeiro casaco de bombazina lá da rua
e estava muito atento aos tiros certeiros do bufallo bill.
depois cresci um pouco, só um pouco.
já então lia todos os jornais, mas demorava tanto no desporto...
em minha casa, porém, havia um retrato teu numa parede
junto a uma velha mesa de fórmica e um cesto com frutos de plástico;
era um desenho impresso a negro, com duas ou três manchas a vermelho
(um vermelho sanguíneo, tipográfico,
que já então coagulava em muitos versos).
fiz mais tarde a guerra, é certo,
mas a minha voz, atenta já, escutava então outros disparos.
que posso, enfim, dizer-te?
que os poetas, esses, continuam a matar-te
com uma doçura muito antiga e alguma assiduidade
e são, por ti, pacientes, minuciosos.
bem podes pois temer que persistam
e façam mais alguns hinos, odes e desenhos;
ou, pior ainda, orações, amuletos, esconjuros
ó senhora nossa de baleizão.
talvez precises de saber também que a vida se faz ainda
de balas transviadas e outros ponderáveis acidentes
ou, mais ainda, estimes saber como hoje doira o sol,
mas doira mesmo, sem nenhuma literatura
e aquece, pelo vidro do café, o meu leve, brevíssimo coração.
além disso, as adolescentes descem a avenida,
os cadernos escolares esvoaçando...
Álvaro Magalhães