- Muitas coisas diferenciam o homem - continuou Paulo - Acima de
todas, diferencia-o a faculdade de sonhar. Na origem de tudo quanto de belo se fez na história e de tudo quanto de belo possamos fazer, na origem de todas as realizações e façanhas, sempre e sempre encontramos essa maravilhosa faculdade de sonhar. Todos sonhamos amiga, todos. Sonhamos com um melhor mundo onde uns homens não vivam da dor de outros homens, onde se não matem crianças com metralhadoras, onde o ar se respire com a liberdade. É esse o sonho que nos dá forças para lutar e para sofrer, para nos afirmarmos felizes na nossa dura vida, mesmo quando perdemos muito do que nos é mais querido. Mas não é esse o nosso único sonho. Mentiríamos aos outros e a nós próprios se negássemos que sonhamos também com a felicidade pessoal, que ansiamos ardentemente o amor, filhos que o inimigo não mate, tranquilidade, um mínimo de conforto. Os militantes dão tudo, amiga, mas não devem renunciar a nada. Se matássemos o sonho, matávamo-nos também a nós próprios como seres humanos que somos.
Maria olhava com surpresa crescente o camarada, de ordinário tão parco de palavras, agora tão eloquente. E o que mais a surpreende não são tanto as palavras que ouve, mas qualquer coisa de fundo, sentido, dramático e apaixonado que nelas transparece. Contida, a voz de Paulo baixou mais a mais, agora é só quase um sussurro, mas quanto mais baixa, mais velada, mais dita em segredo, maior exaltação íntima revela.
- Hoje temos de dar tudo, tudo sem restrições nem limites, dar talvez a vida, dar de certeza coisas que custa mais a dar do que a vida. Se a luta rouba aos pais uma filha querida, que maior sacrifício lhes pode ser imposto? Temos de dar tudo, amiga, sem lamentarmos o muito que perdemos. E acredita. Isso é mais fácil de dizer quando o mal nos toca a nós próprios do que quando toca aqueles a quem indicamos o caminho da luta. Mas tem de ser dito e tem de ser sentido - e depois duma pausa acrescentou: - Já se vê sorrir à nossa frente a meta desejada. Cairão uns, outros virão.
Manuel Tiago/Álvaro Cunhal