Marcas da Guerra Colonial - 3
"Era uma guerra atroz, cortejo de ódios, fome, miséria de toda a ordem; ninguém ignorava os atrasos no desenvolvimento. As populações amedrontadas refugiavam-se no mato: por perseguição ou então por convicção.
Quando sabíamos o que se passava, intervínhamos. Não era verdade que a igreja estivesse calada. Estávamos calados uma bola! Não se sabia nada, era tudo filtrado pela censura e pela PIDE, os militares não abriam a boca, e depois é fácil acusar a igreja de conivente pelo silêncio. D. Custódio não sabia, era um ingénuo. Mas nós, em contacto no mato, denunciávamos logo que era possível. Um exemplo: o episódio de Massangulo, em Outubro de 1966. A tropa portuguesa cercou a aldeia, capturou oito homens e fuzilou-os à frente da população, acusados de pertencerem à FRELIMO. A seguir regaram-nos com gasolina e chegaram-lhes fogo. Depois, não permitiram que ninguém se aproximasse, para que as feras pudessem comer os restos.
Por incrível que pareça, um deles sobreviveu às balas e ao fogo, apesar de bastante queimado. O padre salvou-o na Missão e avisou-me logo: "senhor bispo, vamos ter problemas se eles descobrem isto". Falei com o capitão que comandou a operação. Disse-me ele, completamente hipócrita: onde é que isso se passou? Não sei de nada!... Declarou mais tarde que, apesar de serem turras, autorizava os funerais no local conforme pedia as famílias. Mas, ao contarem os corpos, repararam que faltava um. Quiseram então passar a Missão a pente fino. Mas eu já tinha munido os irmãos com uma carta que exibiram logo, não autorizando qualquer busca. O comandante da selvática operação leu e veio logo protestar comigo. Disse-lhe claramente: incidentes como este comprometem irremediavelmente a continuidade portuguesa nestas terras e junto de gente que jamais esquece ou perdoa!. Naquela região, os assassínios eram constantes: uma diabólica carnificina praticada pelas nossas tropas. Se mais não fiz ou denunciei, foi porque não sabia o que se passava noutras paragens.
D. Custódio era um caso à parte, um homem que acreditava piamente na PIDE e ouvia permanentemente o Governador Geral. Acima dele, o Cardeal Cerejeira não sabia nada. e o bispo de Madarsuma estava em Lisboa, desligado da realidade, e tinha pouco peso. Nesta perspectia, eu e o bispo de Quelimane, D. Francisco Teixeira, reagimos. E numa Conferência Episcopal conseguimos uma votação que retirou D. Custódio da presidência e elegeu D. Francisco. O governador Baltazar Rebelo de Sousa quando soube, ficou furioso.
A tropa portuguesa obrigava os homens nas aldeias a segui-los como carregadores e pisteiros. Eles, com medo - pois a FRELIMO viria a saber quem colaborava com os portugueses - recusavam, e eram barbaramente espancados. Quando tive conhecimento duma situação dessas em Messumba,perto da Missão de Nova Coimbra, logo na primeira oportunidade (...) verberei a actuação junto do brigadeiro. Declarei, alto e bom som, que, se queriam praticar arbitrariedades, que proclamassem o estado de sítio, pois Portugal ainda era um Estado de Direito. O general aproximou-se, deu-me razão, e disse ir tomar providências"
Afirmações de D. Eurico Dias Nogueira, que mais tarde veio a ser arcebispo de Braga, inseridas em Marcas da Guerra Colonial, de Jorge Ribeiro