Possuo um exemplar da 2ª. edição da Praça da Canção, oferecido pelo Mateus Cabrita, então estudante de medicina, que após conhecer-me, deu alguns passos com objectivos de formação política e ideológica. Eu era então um jovem trabalhador da indústria de montagens de automóveis, a iniciar uma militância, que mantenho (manterei até ao fim).
Esta segunda edição tem um prefácio de Mário Sacramento que constitui uma preciosa introdução ao poema de MA. Afirma MS que Manuel Alegre conduz o lirismo do seu eu ao plano de uma expressão colectiva que as experiências teorizadas do nós jamais haviam atingido. E funde em canto de aedo a um tempo singular e impessoal toda a experiência duma época e toda a herança duma literatura, modulando na elocução de uma voz inconfundível o titubear desgarrado dum povo.
Se a obra em questão é sublime, na manipulação da palavra e no seu engajamento militante, tem a acompanhá-la nesta segunda edição um prefácio também sublime.
E a Praça da Canção, não tenho quaisquer dúvidas em afirmá-lo, constituiu a minha iniciação nos domínios da poesia. Até então, o que conhecia de versos era uma matéria inócua, qualquer coisa que rimava, substancialmente diferente de:
Os ratos invadiram a cidade
povoaram as casas os ratos roeram
o coração das gentes.
Cada homem traz um rato na alma.
Na rua os ratos roeram a vida.
É proibido não ser rato.
ou de:
Há homens que são capazes
duma flor onde
as flores não nascem.
Outros abrem velhas portas
em velhas casas fechadas há muito
outros ainda despedaçam muros
acendem nas praças uma rosa de fogo.
Tu vendes livros quer dizer
entregas a cada homem
teu coração dentro de cada livro.
ou ainda de:
Parte de noite e não olha
os campos que vai deixar.
Todo por dentro a abanar
como a terra em Agadir
folha a folha se desfolha
seu coração ao partir.
Aquele tempo - da Praça da Canção - foi um tempo em que o seu autor colocou pela palavra escrita uma mensagem de esperança ao alcance dos portugueses, que incentivava a lutar pela transformação social. Outros tempos vieram e mudanças abissais se revelaram - eu seja ceguinho... ou transformamos este país num Rio Maior... - mas isso não nos impede de recordar e celebrar a Praça da Canção.